Apps de período, aborto e caça às bruxas

Esta semana, entrámos numa nova dimensão na área dos direitos reprodutivos, com o Supremo Tribunal americano a acabar com o direito constitucional ao aborto (interrupção voluntária de gravidez – IVG), cinquenta anos depois da decisão no caso Roe Vs Wade ter desenhado um caminho de segurança para quem dele precisava.

em Maio, quando as primeiras movimentações no sentido da proibição da IVG vieram ao de cima, lançaram-se questões sobre a privacidade das utilizadoras de apps de registo de ciclo menstrual e fertilidade.

Em cima da mesa, está a possibilidade de as apps poderem vir a ser intimadas judicialmente a partilhar informação registada sobre os ciclos de determinada pessoa, se essa pessoa for julgada por incumprimento da lei (leia-se, tiver feito um aborto, ou caso seja suspeita de).

O pânico instalou-se entre as americanas, a viver neste clima de caça às bruxas, fazendo com que várias apps tenham vindo esclarecer a sua posição relativamente à partilha de dados, criação de novos modelos de privacidade, etc.

Há vários casos “interessantes”, dos quais, para mim, a Flo app continua a ser melhor exemplo (pela negativa), e sobre a qual fiz um post no instagram há um ano e meio, quando se ficou a saber através de um relatório do Wall Street Journal que a app, com 100 milhões de utilizadores, partilhou informações com a Google, o Facebook, e outras, apesar de garantir privacidade de dados nos seus “termos e condições”.

Não terá recebido efeito de ricochete suficiente na altura e veio agora a público, no seu comunicado das últimas horas, informar as suas utilizadoras que passará a disponibilizar funcionamento em “modo anónimo”, coisa que ninguém ainda sabe bem o que é, mas que nos deixa com mais ou menos certezas sobre como tem funcionado até agora.

Mas este quadro de partilha de dados não é exclusivo da Flo.
Um estudo em 2020 da Privacy International, avaliou cinco apps de período e a forma como a partilha de informação ocorre, para personalização de anúncios e outros fins.

Nos últimos anos, apps como a Kindara, que continua a ser a minha app de eleição, ou a Natural Cycles (que não tem versão gratuita), têm contribuído com informação anónima de milhares de ciclos menstruais para estudos. Pessoalmente, enquanto profissional diretamente envolvida na área, sinto que isso tem sido uma mais-valia, já sabemos hoje muito mais coisas graças a esta ajuda da femtech.

O que me parece sério são as suspeitas de que algumas apps, como a Ovia, possam partilhar informação com as empresas empregadoras das suas utilizadoras, ou até seguradoras!
Nas suas condições de privacidade, a app garante não o fazer de forma indiscriminada mas confirma essa realidade se for legalmente endereçada nesse sentido.

Num cenário mais extremo, põe-se ainda a partilha de informações de cariz privado com outras entidades, onde se incluem as clínicas falsas (conhecidas por receberem pessoas que pretendem uma IVG, mas que têm uma agenda de coação e intenções no sentido contrário).

A app Clue, por sua vez, já fez saber que se encontra fora da alçada da lei americana e que não partilhará nunca a informação das suas utilizadoras. Emitiu o comunicado mais claro e mais tranquilizador que li até agora.

Em Portugal diria que não motivos para alarme (ainda), relativamente à partilha de dados pessoais e personalizados para efeito de penalização direta, mas importa que estejamos atentos.

O número crescente de objetores de consciência e de instrutoras de métodos naturais com apps próprias, com posições claras (apesar de pouco declaradas em relação às políticas anti-aborto), pode resultar numa surpresa para as suas utilizadoras quando as coisas correm de forma inesperada.

Neste mundo da fertilidade, nada como perguntar a médicos, instrutoras e/ou outros profissionais que escolhemos para nos acompanhar, como se posicionam relativamente a coisas que são importantes para nós.

Por fim, perceber a forma como os nossos dados pessoais, anonimato, privacidade e internet se relacionam, é importante, e entender que isto não é um assunto limitado às apps de período, também!

Há uma frase de que gosto particularmente e que diz que se alguma coisa “é grátis, então o produto és tu”. Ou seja, o que quer que estejas a entregar é valioso para quem te presta o serviço gratuitamente, podendo, por isso, ser depois capitalizado ou não. Da próxima vez que usares algo gratuito, pensa nisto.

Relembro-te que está disponível, desde sempre, uma grelha de gráfico de Método Natural de Fertilidade para impressão aqui no site, se quiseres voltar ao que fazíamos quando aprendi o monitorizar o ciclo: papel e caneta, que nunca nos falha 😅

Bons ciclos!

Patrícia

Créditos da imagem: Dan Nelson